Já mais que uma vez o afirmei: o envelhecimento da população da Ilha do Pico é um problema grave mas de difícil resolução. A emigração dos anos 60 e 70 afectou esta ilha como as demais. Os resultados estão à vista. Falta gente na segunda maior ilha do arquipélago. Nos finais do século 19 – rezam as estatísticas – chegaram a habitar esta ilha cerca de 36 mil pessoas. Presentemente, os residentes rondam os 15 mil.
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Não admira, pois, que a pirâmide etária esteja invertida. Quem passa por essa ilha adiante, poucos jovens encontra. A população estudantil é reduzida.
Os campos são cuidados por homens de adiantada idade que não largam, enquanto podem, as suas hortas e as suas vinhas. Mantêm-se agarrados aos bocadinhos que receberam de herança e acrescentaram mais uns prédios ao seu património que legarão aos filhos, muitos deles ausentes.
Há dias, um colaborador do semanário picoense Ilha Maior, deu-se ao trabalho de investigar quantos idosos, com mais de noventa anos, viviam na sede do concelho da Madalena. Identificou-os um a um e concluiu que, numa população com cerca de 2.300 habitantes, havia 14 pessoas com mais de 90 anos. E até noutra freguesia com menos população, existiam 13 idosos também nonagenários.
Alguns deles estão já acamados, outros vivem “sozinhos com Nosso Senhor”, sem nenhum meio de comunicar em situação de emergência, como me informou uma enfermeira do serviço ao domicílio. Os vizinhos são a sua companhia, nos bons e maus momentos, numa solidariedade que se mantém viva e actuante nos meios pequenos. Outros têm a felicidade do ambiente familiar que os faz suplantar as mazelas próprias da idade.
Na Manhenha, zona de veraneio desta Ponta da Ilha, há uma figura incontornável - o Tio Henrique da Nazaré. Tem 96 anos. Não usa óculos. Um bordão de ramo de faia, dá-lhe uma certa estabilidade mais psicológica que física, pois as pernas que tanto afectam os mais velhos, ainda estão rijas, fortes e valentes. De vez em quando, sai de casa com um pesado caniço às costas e vai até ao porto pescar às vejas – bicho que não se deixa capturar facilmente e que costuma dobrar a cana antes de deixar as águas do mar. Já não pode apanhar moira (caranguejo), nem subir a ponta do Calvino, junto ao Farol da Ponta da Ilha, nem andar por esses pesqueiros que ele bem conhece. Mas “tá bem bom enquanto for assim!...” - remata ele, com o seu sorriso franco.
Domingo passado, houve uma coroação na Piedade, promessa de Manuel Raulino de Freitas e da Maria do Rosário, conhecida artesã, com um livrinho de interessantes estórias publicado.
Gente de toda a ilha - da Madalena, do Cais e do concelho das Lajes - encheu o Salão Paroquial e a Escola no jantar de sopas do Espírito Santo. Presidiu à cerimónia o Bispo de Angra e Ilhas dos Açores. A maioria dos convidados era gente acima dos 60 anos e alguns a abeirar-se dos 100.
Um grupo diferente se distinguia da normalidade: os tocadores da filarmónica local, esses sim jovens estudantes na sua maior parte, executantes formados na Escola Secundária. Alguns integram também o coro da Capela que muito bem solenizou a celebração eucarística. Houve idosos que até choraram, emocionados, com a qualidade da execução. No adro, antes do cortejo da Coroação formado com os tradicionais quadros levados pelos convidados e familiares dos mordomos, não se falava de outra coisa. Uma honra para a freguesia e para os que nela vivem. Um sintoma de que existe um sentido de pertença e uma identidade muito arreigada em gente que necessita do reconhecimento das suas capacidades e qualidades.
É um pouco do que acontece nos arraiais das festas de Verão, durante os concertos das filarmónicas. Os mais velhos, muitos dos quais antigos tocadores, envolvem o coreto para ouvir as bandas tocar. Faz-se um religioso silêncio, como se de uma sala de concertos se tratasse. Tudo se aprecia ao pormenor: a regência do maestro, a execução, os naipes e os tocadores e só no final das actuações se estabelecem comparações com as outras filarmónicas. Antigamente, não se encarava bem uma rapariga “tocar na música”. Hoje rapazes e raparigas, integram as bandas e os próprios repertórios estão adaptados às preferências dos seus ritmos musicais.
As filarmónicas da Ilha do Pico apresentam uma qualidade de assinalável execução musical que se fica a dever à formação recebida nas Escolas oficiais e nas Escolas de Música de cada agremiação.
Outrora, eram os músicos mais velhos e dedicados que ensinavam aos mais pequenos o solfejo e os instrumentos. Era um percurso lento que se assinalava quando os novos tocadores vestiam a farda e se incorporavam ao lado dos mais velhos.
Todos estes trajectos de vida e de lazer perpassam pela memória dos mais antigos. São eles os guardiães das memórias locais e os transmissores aos novos e vindouros, da cadeia de vivências que constitui a cultura dos povos.
Por um lado, assusta-nos o envelhecimento da Ilha do Pico - o quarto maior do arquipélago -, por sabermos que os novos são inovadores, criativos, empreendedores e fundamentais ao desenvolvimento desta ilha; por outro temos a noção de que os mais velhos garantem a nossa identidade e a nossa memória colectiva. Só o casamento entre estas duas etapas da vida será a chave do nosso sucesso.
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